sexta-feira, 30 de março de 2007

Trinta

A noite tinha sido inquieta pra menina. Saia de um drama da consciência e não sabia o que pensar sobre ser ou não ser nessa vida. Acordou abruptamente e na automatização das 5:30h lançou-se ao dia que se descortinava. Entrou no carro, ia de carona no lado esquerdo. Encostou a cabeça no vidro e torceu para que ninguém encostasse na sua pele. Não gostava de contato assim, tão próximo de quem não conhecesse e até de quem conhecesse, dependendo quem fosse.

Egoisticamente voltava-se pra seu mundo, mundo este que contemplava os dramas que só ela julgava ter. Momento de não pensar e pensar tudo junto, até que algo fugia do normal, ônibus desviavam seu curso normal, contudo o carro que estava seguia pelo costumeiro. Nos segundos daquele momento, do único manifestar de sua voz naquela manhã ao dizer aos outros passageiros ‘o ônibus está desviando’, até o momento de ver a tragédia matinal, pensou um milhão de si em uma só coerência de cores, dentro do matiz do céu azulado, contendo tristeza, melancolia, cansaço. O enfado chegara cedo e parecia tomar proporções gigantescas na medida em que pensava mais e mais as coisas da alma.

Ali encostada no vidro, via os carros parando, engarrafamento enorme se estendia na rodovia ao lado. Que acontecia? Acidente? Curiosidade, ajeitava-se no banco. Quando olhou finalmente o movimento todo, polícia federal, polícia de outros tipos se deparou com a Kombi carbonizada tombada do lado esquerdo da pista. O horror tomou conta de sua vista, seria um atentando criminoso? Estaria o Rio em clima de terror? Estaria sua vida em perigo? Que vida? Que perigo? O caso é que em mais alguns segundos veria uma das cenas mais marcantes da sua vida, via um corpo reduzido a esqueleto carbonizado dentro do veículo negro em brasa.

Era um corpo de um homem, parecia ser um homem com seus trinta anos. Trinta. Era essa a idade. Estava ele indo pra onde? Indo pra viagem da sua vida, diriam uns com humor mórbido. Ele tinha faculdade? Será que doutorado o faria entrar no céu direto, perguntaria a secretária do setor de Inglês da faculdade da menina se soubesse do causo horas depois por estar com raiva dos pedantes de plantão. Seria ele uma pessoa resolvida na vida amorosa, na vida profissional? Será que ele traiu a namorada ontem e estava arrependido e pensava em pedi-la em noivado hoje porque no erro viu com clareza o que ele queria pra vida toda? Teria ele escutado Tracy Chapman e visto como aquele som romântico dela é gostoso de deixar-se embalar? Ele viu Amélie Poulan? Ele disse que amava a mãe dele no final de semana quando ela foi visitá-lo? Ele só tinha trinta anos, no dia trinta do mês três do ano sétimo deste 2000 e veio a falecer (que torçamos que tenha sido do impacto do que do fogo) num acidente causado por um carrão prata que deu uma leve esbarrada na traseira da kombi que desgovernou, bateu na pilastra e veio a pegar fogo imediatamente.

No mais, a menina foi pra floresta da alma discernir ela mesma que caminho seguir. Ela sabia do risco de viver na cidade, na cidade cinza-azul-melancolia, do carro prata-cinza a atropelar tudo que tinha, pois ela mesma tinha recebido sua batida. Ia então pra floresta verde-lilás-sopro-de-vida. Ia lá conversar com seus espíritos e saborear do canto dos pássaros e lembrar das ilhas de sua imaginação e do povo delas. A menina se importava muito menos com o caminho, muito mais com as pessoas do caminho.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu sigo dizendo que a tal estética (pós-)moderna é, no fundo, uma estética romântica não tão bem disfarçada.

A questão, em verdade, nem é tanto do valor ou do juízo estético em si; talvez a diferença esteja no destinatário, no fruidor, que não é mais o outro, mas o próprio autor. O que também pode explicar porque tanto da literatura contemporânea fica suspensa num sem-início e sem-fim, que adaptando Horácio começa e termina "in media res" - e citar Proust é mais uma questão de honra do que de genealogia.

Pensamentos estéticos em plena noite. :)