domingo, 30 de abril de 2006

Procura da Poesia

por Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


sexta-feira, 28 de abril de 2006

Dos causos e percalços da tal vida moderna

Causo 1: O perseguido

Certo dia chega o professor em aula para justificar porque faltar na semana passada. Ele, com um olhar caustrofóbico, começa a justificativa:

- Creio ter de deixa-los a par da situação que me aconteceu na semana passada ao qual me forçou a não vinda. Há muitos anos atrás, aqui na faculdade de letras, dei aula para uma moça que se via não ser lá muito normal, que teria sérios problemas psicológicos. O caso foi que anos depois me deparo com essa mulher me perseguindo, ligando para minha casa e me ameaçando e até vindo aqui na faculdade me agredir, como na semana passada. Ela alega que há algum tempo professores aqui do Fundão a pegaram e levaram a força para o CCNM (prédio de exatas) e começaram a fazer experiências científicas com ela do tipo injetarem esperma dentre outras coisas. Agora ela anda dizendo por aí que dessa experiência nasceu um menino e uma menina, loiros de olhos azuis, sendo que ela é uma negra alta e eu, não sou loiro!

É, para quem almeja vida de professor e acha que o maior problema que enfrentará será ou descaso do governo ou do aluno, vê-se que há além de tudo os ‘fãs’ perscrutando no ir e vir.

Causo 2: O comentário

Estava certa amiga esperando seus amigos na porta de certa pizzaria em certo lugar quando avistou d’outro lado da rua 3 rapazes conversando descontraidamente, sendo que um deles foi ao seu encontro. Daí desenvolveu-se uma boa conversa, de fato a famosa ‘conversinha’ sobre o que ambos faziam e coisas afins. O causo é que passado certo tempo, ali na porta da certa pizzaria, o clima estava feito e tanto o rapaz quanto a menina sentiam-se inclinados a galgar um degrau na recente amizade. Então, cavalheiristicamente o rapaz pede para a moça o direito de beijar seus lábios. Contudo, bem no meio do caminho da concretude do desejo de ambos, vem ele com seu comentário: não sei se você se importa, mas tenho namorada.

Quebra a força, não quebra? Ela, muito dignamente, dispensou o moçoilo cara de pau na mesma hora. E ele soltou um ‘ai que pena’ desconsolado. E não querendo comentar, mas já fazendo meu comentário, tinha de ser um engenheiro mecânico.

Causo 3: O enunciado

Havia eu recebido a discursiva prova de Literatura Inglesa, quando parto diretamente para a consecução da primeira questão que era, na minha concepção, recontar a história das três baladas que fora dada no título. Assim começo minha prova, sem nada mais pensar. Da primeira faço uma notícia de jornal, da segunda um roteiro de filme; da terceira tinha opção de fazer um conto infantil, mas desisti porque não havia tanto tempo assim disponível, afinal ainda tinha a segunda questão, a qual valia 6,5.
Na minha inocência de aluna aleatória ainda achei estranho o tamanho da primeira questão que só valeria 3,5. Contudo segui na façanha até chegar na segunda questão: interpretar um poema e com a sanção de fazer um parágrafo com 500 palavras. O 500 desesperou-me, fiz por volta de 250 e forçando muito. No desespero ao final da prova pergunto ao professor se ele se importava que fosse menos, ele respondeu que iria ver o que estava escrito, não iria contar palavras, 500 era só pra ter uma base (sim, o que são 500 palavras numa questão, não é?
E olha, até que estaria tudo nos eixos se não descobrisse que era uma balada para escolher, não as 3 reescrever, e que com isso além de ganhar boas debochadas do professor (“olha só, aluno de letras e não sabe ler enunciado”), ganho uma nota limitada, do tamanho da minha falta de atenção.

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Epifania da greve

Acordou quinze pras seis. Sabia que já estava atrasada, então dormiu até as seis quando foi despertada de vez de seus sonhos. Levantou-se com a preguiça típica imaginando o dia que se configuraria e quanto teria de correr para não fazer de um pequeno atraso a vergonha de se entrar no meio da aula. Quase despertou de vez na hora de escolher a roupa; hoje é dia de azul... azul claro, pensou. Colheu o azul do céu bonito da manhã fresca com os olhos, e assim o copiou para seu guarda-roupa. Em nove minutos estava pronta para o café, muito pão de forma com maionese porque hoje não era dia de sentir fraqueza, era dia de prova. Forçou-se a comer tudinho e sair esbaforida para o elevador. Antes de sair do prédio de vez, separou o dinheiro, algo que nunca fazia antes de chegar ao ponto, porém hoje pareceu propício faze-lo. Caminhou pensando no frescor da manhã, que poderia ser assim o dia todo, uma brisa gelada pairando no meio de tímidos raios de sol. Chegava no ponto de ônibus estranhamente cheio. Teria acontecido algum acidente que impedia o fluxo dos ônibus? Era isso... Ninguém sabia de nada. Passam dois ônibus em direção ao seu primeiro destino, ambos lotados. Ela não se anima a pegar, afinal sempre vem outro atrás. Contudo não veio. E o que veio foram os telefonemas, “os ônibus estão em greve”. Greve? Mas não é possível, tenho prova, tenho compromissos, tenho de chegar lá me cansar o dia inteiro, voltar pra casa e reclamar do cansaço. Tem de ser assim, bramia nos pensamentos. Como podia estar tão vulnerável a uma greve de ônibus, ela e todos mil contáveis? Sentia que perdia a força, que era um alguém tão insignificante nessa história que nem o motorista do ônibus se importava. E sentia o preconceito em si “nem o motorista do ônibus”, porque haveria ele de se importar? Afinal, ela não se importava com a greve dele e esbravejava com cara chorosa contra a situação em pensamentos. Ao final de uma quase eterna hora, refletindo não haver condução que lhe sanasse o problema, entregou-se ao desgosto e foi ter em casa o troféu da decepção. Entrou, as pessoas formigavam. Ela se sentia impossibilitada de tudo. Teria de fazer uma segunda chamada que nunca fizera antes, nem quando na véspera de prova de teoria literária tinha extraído o siso. E agora, era assim? Sem ônibus, sem caminho, sem início, meio e fim. Ah, o fim, fim ela daria. Trancaria-se no quarto fechado com o pesado edredom e dali faria morada da sua inquietação cantando contos na mente e sonhando atravessado o dia que não acontecera. Teve vontade de chorar.

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Tempos depois: "acho que os ônibus voltaram...", ela agrade com sarcasmo a informação preciosa.

domingo, 9 de abril de 2006

Autobiografia

Seria esse blog uma autobiografia inventada ou uma ficção autobiográfica?

No fim acabo por traçar um tanto de fantástico na realidade, isso eu sei.

Mas foi justo autobiografia o tema de uma das oficinas de linguagem, daí que criei uma autobiográfia ficcional de um personagem aleatório.

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Autobiografia

Confesso que sou descendente direta de Eva. Minha doce mãe, na adolescência inconseqüente, usou de todo feminismo e sensualidade para roubar papai de sua sonsa noiva cheia de graça. Há os que não titubeiam pela maçã e foi daí que nasci, fruto proibido. Porém, como é mais que sabido nos ditos populares que o que é bom é escondido, nasceu eu, o melhor que poderia acontecer na vida de Adão e Eva dos anos 80. Claro, que como conseqüência para eles as atribulações foram muitas, afinal ser expulso do paraíso da irresponsabilidade juvenil não é tão simples. E aí foi que mamãe sentiu as dores do parto e no peito de tanto sugar sua energia, e papai no bolso. Foi 18 de outubro o dia. É, isso mesmo, faço parte dos filhos do carnaval. Embora eu mesma não me lembre do dia, lembro de mamãe tentando esquece-lo como se fora esse o motivo do pecado original. Acho que papai nunca gostou de lembrar também. Só gostaria de saber que deus os puniram com tamanha crueldade nessa história (tenho um palpite, o deus família). Contudo percebo felicidade em seus olhos ao verem que pela incauta maçã mordida originou-se toda um humanidade. A minha humanidade. Elejo-me assim a deusa solipsista deste mundo pois dessa biografia dita minha acabo por inventar cada linha da verdade que às vezes pode parecer pecadora, mas nada original.


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ps: tem um alemento que é repetido em relação ao texto anterior.

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Alfabeto

Ali, bento cavalo derrotado, estando forçado, galgando história. Ia já levando mecanicamente nove outros parasitas queixosos, realizando sua tarefa, um veloz xucro zangado, zonziando xioso, vagando um tempo. Sem rumo queria poder ousar navegar melodiosa liberdade. Jazia ímpio horas galopando, fervorosamente ele demonstrando cuidado bestialmente amigo.

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Feito hj no ateliê de jogos de linguagem, o objetivo era construir um texto usando as letras do alfabeto. Como se repara vai de a-z e z-a. É divetido, além de quebrar a mente. E tem um traço aí que aparece em outros textos do curso, a restrição formal. (vamos ver se é descoberto através dos próximos textos q pretendo postar aqui da oficina).