O mendigo encostado no meio fio da porta da loja, diagonalmente, dormindo. Todo dia quando passo assim está ele, nos sonhos sublimes que não posso imaginar, pois fico compadecida de um não-sei-o-quê social que ainda mora no hábito de ser humano. Mas, de fato, neste hábito de ser humano, não está incluido esperar aquele homem acordar pra lhe estender a mão. Sempre ali está no meu trajeto, ao descer do ônibus, voltar uns 100m e entrar na ruazinha que dará para meu prédio, o mendigo. Ele descansa com uma serenidade supreendente, e eu o observo quando passo, todos os dias, furtivamente. No início, quando o vi dormindo a primeira vez, tive um sobressalto,preocupada que pudesse ser algo de ameaçador. Bobagem, ele só queria descanso, eu só queria passagem... Nossos caminhos não se encontravam de fato, pois quando eu passava ele ali não estava, só seu corpo.
No entanto, hoje, tivemos nosso primeiro encontro. Ao puxar a cordinha do ônibus uns segundos adiantada o motorista entendeu que puxara eu a cordinha no atraso e parou imediatamente no ponto de ônibus anterior ao meu de modo que, ficando sem graça de dizer 'é na outra', desci ali mesmo, afinal a caminhada não era lá isso tudo (de fato era nada). Sem nem pensar, iria então passar na calçada oposta do mendigo, que desta vez, dada minha mudança de percurso, eu poderia ver de frente. Para minha grande surpresa ele estava acordado, como pressentindo que algo na tarde de segunda-feira mudara. E mudara. O que pra gente resultava o fim de uma rotina, para mim era a rotina de meus próprias dias, das minhas próprias horas que começavam. E lá estava ele do outro lado, sentando no meio fio da loja, com os cotovelos no joelho, olhando para frente. Me olhou de relance, como mais um rosto dos tantos que se vê, talvez sem nem mesmo se dar conta do rosto que via por estar divagando em seus próprios pensamentos. No meio disso tudo, eu, me senti estranha... Vê-lo dormir todos os dias na mesma posição ao passar por ali tornou-se uma espécie de ritual que agora fora abruptamente interrompido. Este era o nosso primeiro encontro e me senti mais bege que nunca, com a blusa branca do curso, jeans apertando por conta dos quilos ganhados nas férias, sapatos vermelhos, bolsa predileta, cabelos soltos. Ele com sua blusa de sempre,clara, calção e chinelos. Era o mendigo de outros abertos, como que diferente do mendigo esse que todo dia me fazia pensar nele enquanto ele dormia, que me fazia refletir sobre múltiplos assuntos desde o porquê de existirem mendigos, até o porquê de sentir que tudo era um grande sonho, como em um mundo solipsista. Talvez eu estivesse no sonho dele, sendo controlada por ele, e daí ele teria o poder de determinar o próximo acontecimento da minha existência. Por favor, que me traga uma notícia boa. Inusitadamente boa, com gosto de jujuba, com delicadeza de um arranjo de flores, com a mesma sensação de ver uma nuvem quando bate o sol. Ah, eu quero, quero e quero amanhã, meu amigo solipsista, se não for pedir muito.
Um comentário:
Adorei o texto! bjo, bjo, amada.
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