Quando chegava da escola, lá pelos 10 /11 anos de idade, mamãe tinha costume de ir no bairro vizinho fazer compras das mais diversas, geralmente de especiarias (assim gostava de chamar temperos como cuminho, pimenta do reino e todos os outros que dão vontade de espirrar). Numa dessas idas encontrei então uma alma gêmea.
Passávamos por uma loja de animais e, como sempre fazíamos, nos demorávamos um pouco vendo os cachorrinhos. Estávamos mamãe, irmã, tia e eu. O caso é de soslaio observei uns cachorrinhos poodles da cor marrom. Eram três: um dorminhoco, outro desconfiado e um último bastante animado. Esse animado cativou minha’lma. Foi grande a impressão que aquele cachorro fizera, no entanto, mamãe deixou claro que papai nunca aceitaria mais uma tentativa de cachorro lá em casa (seria a terceira em um semestre). Cheguei em casa com aquela angústia infantil visível até no maior dos insensíveis. Como haveria daquele cachorro animadinho ser meu? Então fiz a proposta: pago pelo bicho. Coração de mãe não agüenta com essas coisas, e muito menos com irmã caçula demonstrando tristeza através de lágrimas. O animadinho haveria de ser nosso.
Minha tia se propôs a buscá-lo de bicicleta. Deixei claro que queria o mais animadinho, com o pêlo mais rarefeito, era o mais animadinho. Saberia que o reconheceria assim que o visse. Ao chegar, porém, veio minha tia com o cachorro de pêlo mais escuro: era o dorminhoco. Decepção se apossou de mim: como poderia ela ter feito aquela tragédia? Eu tinha encontrado minha alma gêmea no animadinho de pêlo rarefeito, e ela me traz o dorminhoco de pêlo bem escuro por achar assim o “mais bonito”? Que se tem beleza a ver com amor? Ah, teria de me contentar com o dorminhoco.
Não foi difícil de papai aceitá-lo, difícil foi mesmo deixá-lo alguns meses depois porque nos mudamos para Santa Catarina. Ficou com vovó e vovô desde então, e o visitávamos todo o ano (assim como a todos os parentes, é claro). Passavam os anos e ele era o único a demonstrar a mesma grande empolgação em nos ver, como se fosse 1997. Todo ano, todo ano, lá estava ele, Beethoven, que de dorminhoco não tinha nada: era um grande brincalhão, amoroso e super dócil.
É engraçado que o tempo passa e a gente não dá o mesmo valor as pessoas, coisas e afins em nossa vida. Com o animalzinho não foi diferente. Passou o tempo, mesmo morando aqui no Rio, visitas eram esporádicas. E quando lá ia vê-lo, mal lhe dava bola. O cachorro passou a padecer dos mais variados achaques, se muito um olhar de pena consegui lhe dar.
Ele se foi faz pouco tempo. Fez-me então pensar: no céu aceitam cachorros? Há de haver céu sem cachorro? Há céu? Não sei, não sei... Sei que Beethoven se fez amar por todos e foi amado de volta, como merecia. Ele me fez uma criança mais feliz, e foi minha primeira grande vontade de infância.
Beethoven não foi o escolhido como alma gêmea, mas o acaso quis que ele se revelasse diante de mim como verdadeiro companheiro. Foram 13 anos, 13 anos de saber que ele sempre estaria lá. E agora, quem estará? Ter cachorro tem dessas coisas...